Ela
foi descoberta ainda garota. Aos 17 anos, cantando com amigos em uma
típica tasca portuguesa, a lisboeta Maria Teresa de Almeida Salgueiro
tornou-se vocalista do nascente “Madredeus”, em 1986. Iniciava ali a
carreira da cantora portuguesa mais famosa no exterior, depois de Amália
Rodrigues. Segundo Pedro Ayres de Magalhães, um dos fundadores e
diretor do Madredeus, Teresa foi, por vinte anos, “a maior inspiração do
grupo”. E não havia exagero algum nessa declaração. Só consegue
entender a força das palavras de Pedro Magalhães quem se entregou à
magia da voz de Salgueiro. Sem qualquer educação musical formal,
revelação surpreendente para nós, não resta muita dúvida de que Teresa
foi tocada por uma “existência superior” – como a crítica costuma fazer
referência e se render ao seu talento inquestionável. Além da beleza
clássica, que foi explorada em quase todas as capas dos discos do
Madredeus, a cantora – que possui hábitos muito simples – é extremamente
educada e adora o contato com os fãs, além de frequentemente interagir
com eles por meio das redes sociais.
A
notícia da saída de Teresa Salgueiro do Madredeus, em 2007, assombrou o
mundo da música, mas foi o marco inicial de uma carreira solo que já
havia sido consolidada, muito antes de seu início propriamente dito.
Vivendo um momento de graça, de mais autonomia e compondo suas próprias
músicas, ela revela, em entrevista exclusiva à Revista Leal Moreira,
toda sua trajetória em bastidores e à frente, no comando da sua própria
história. Com vocês, “o mistério” revelado de Teresa.
Você
começou muito jovem no Madredeus, aos 17 anos, quando te ouviram cantar
em uma tasca em Lisboa, certo? O Pedro Magalhães, certa feita, declarou
que você era a grande inspiração do grupo. E a gente tem de concordar
que você tem uma voz única, inesquecível. Como começou tua história com a
música? Você teve uma educação musical?
Eu
tive uma educação musical básica, daquela que você tem na escola, não
mais que isso. Tive aulas de piano, durante alguns anos, mas também de
uma forma não muito aprofundada, digamos assim. Quando eu comecei a
cantar, eu não tinha qualquer tipo de formação.
Apesar
de uma não-educação formal musical, de uma forma geral e quase
uníssona, os críticos dizem que ao longo dos anos sua voz amadureceu e
que ficou ainda mais bonita. Você tem esse mesmo senso crítico?
Como
eu te disse, quando comecei a cantar, não tinha qualquer tipo de
formação musical formal em relação ao canto. E ainda hoje, devo dizer
que não tenho muita formação. A minha grande formação são as canções que
eu cantei durante quase vinte anos com o próprio Madredeus e com outros
projetos dos quais participei. Algumas dessas canções, gravadas também
ao longo desses anos, inclusive foram reunidas em um álbum (“Obrigado”),
que foi lançado em 2005. E há muitas outras parcerias em outros
projetos. Tudo que eu tenho cantado, no fundo, tem sido a minha grande
escola. No início – e isso é possível observar – o primeiro disco que
gravei, ou melhor, que o grupo gravou (“Os dias da Madredeus” – 1987),
foi feito, de certa forma, de maneira “precária”, porque o disco foi
gravado em três madrugadas, direto, sem qualquer direção. Não tinha
escola, enquanto cantora, e não tinha direção para o grupo. E quando eu
ouço esse disco – do qual gosto imensamente – reconheço uma total
espontaneidade e uma falta da direção que, de fato, não havia. É um
disco puro, espontâneo. Anos mais tarde, em nosso primeiro disco de
estúdio, o “Existir” (1990), é possível perceber uma grande diferença na
voz e aí eu já havia começado a ter aulas particulares de canto, por
três anos e mais um ano em conservatório. E assim foi quando iniciamos a
turnê de “O Espírito da Paz” (1994), que foi o terceiro disco gravado
em estúdio. E aí... o processo de aprimoramento continua até hoje
(risos).
De
certa forma e por muito tempo, sua imagem e a do Madredeus fundiram-se –
isso te incomoda? Quase seis anos após sua saída, como você avalia sua
saída do grupo e como vê sua própria trajetória em carreira solo?
(risos)
Essa pergunta contém muitas perguntas, mas vamos lá. Voltando, por
exemplo, ao “Obrigado”, que foi um disco resultado de uma coletânea, por
assim dizer, dos trabalhos “solos” que realizei quando ainda estava com
o Madredeus. E é possível observar diferenças entre as faixas. Eu sinto
uma disparidade na voz, inclusive, porque as músicas foram gravadas em
períodos muito distintos. Em relação ao grupo, é absolutamente natural
que a imagem seja associada. Por muito tempo, dediquei-me a cantar o
repertório do grupo, a divulgar seu pensamento, sua obra. E isso ocorreu
por vinte anos. Quando entrei no grupo, eu tinha 17 anos. Logo eu tenho
muito mais tempo de vivência no grupo do que tinha de vivência de mim
mesma. Entendo perfeitamente que as pessoas ainda me associem aos
Madredeus – estranho seria se não fizessem essa associação (risos).
Agora, me permita uma observação: o grupo de trabalho que existia quando
entrei, foi o mesmo por dez anos. Quando eu saí, o grupo era totalmente
diferente. Da formação inicial, no período da minha saída, em 2007, só
estavam o diretor do grupo (Pedro Ayres de Magalhães) e o José Peixoto,
um virtuose da guitarra, que contribuiu enormemente para o trabalho. Fui
me adaptando a todas essas mudanças, até que surgiu um momento em que o
grupo parou durante um ano [período que foi definido, por eles mesmos,
de “sabático”, em 2007] com ideia de repensar sua atividade, sua própria
“calendarização”, porque – imagine você – foram duas décadas intensas.
Tínhamos falado até da hipótese de trabalhar em períodos intensivos, de 3
ou 4 meses, e depois os músicos poderiam dedicar-se a outras atividades
– já que os músicos tinham outros projetos, outras coisas que desejavam
fazer. Quando nos reunimos novamente, ao final de 2007, foi-me proposto
um contrato de sete anos de exclusividade e... Passei toda minha vida
adulta no grupo, tinha vivido suas diferenças... Os amigos do começo da
carreira, da formação original do grupo, já não estavam – e no começo, o
Madredeus era uma reunião de amigos, que depois se profissionalizou. E,
portanto, pelos próximos 7 anos, eu não poderia fazer mais nada, o que
era impossível. Ou era isso, ou era nada, não havia muito a
possibilidade de flexibilizar. Vou insistir que havia muito mais tempo
da Teresa com o grupo, do que da Teresa sem o grupo. E eu tinha
necessidade de parar um tempo, enfim, para ficar em casa, por exemplo,
para o que fosse ou para experimentar novas coisas, de modo que eu
decidi que continuaria meu percurso na música. E eu vivi, após isso,
tantas novas experiências, novos ensembles,novos estilos... sempre à
procura dos músicos, com os quais compus as músicas e gravei em agosto
de 2011 [“O Mistério”, CD que ela lança este ano e com o qual pretende
vir ao Brasil].
Lembro-me
de ter ouvido muitas vezes que havia uma discordância saudável sobre o
gênero musical no qual vocês estavam inseridos: fado, world music e
alguém definiu como “um espírito muito próximo do fado”. A crítica
especializada diz que você é a herdeira legítima da Amália Rodrigues. E
voltando um pouco à pergunta inicial, em qual dos gêneros musicais você
se insere?
Eu
não sinto a necessidade de rotular ou categorizar a música. De maneira
nenhuma. O fado é uma música tradicional de Lisboa e Coimbra e que viveu
seu apogeu e desenvolvimento com a Amália Rodrigues, com toda sua
indulgência, da sua extraordinária versatilidade enquanto cantora.
Antes, o gênero era considerado muito “marginal”, restrito apenas às
casas de fado. E graças a ela – e a outros artistas, mas muito mais
graças a ela, certamente – o fado popularizou-se e saiu das casas do
fado. Não era muito bem visto ser fadista e, graças à Amália, isso tudo
mudou completamente. Em termos líricos também, porque ela começou a
cantar poetas contemporâneos e foi buscar outros, de outras épocas.
Graças ao trabalho da Amália, a Unesco reconheceu o fado como patrimônio
imaterial da humanidade. Quanto ao fado, não vejo relação com o que fiz
por quase 20 anos. Talvez a única relação seja o fato de eu ser de
Lisboa. Com o Madredeus, cantávamos uma fusão de vários estilos e, com
certeza, algo muito próximo ao estilo do fado era realizado, mas o que
predominava era um estilo clássico, uma estrutura clássica de execução
da canção. Também não era world music, uma etiqueta muito usada para a
música étnica. Portanto, o que eu faço é música portuguesa, é música
contemporânea, uma fusão de muitos estilos diferentes. Ligada à memória
do que é a cultura portuguesa, com influências de outras culturas, o que
é muito enriquecedor. Também não se pode confundir a música que faço
agora com a música que cantei por quase duas décadas. Durante esses
vinte anos, as músicas eram compostas para mim e hoje canto minhas
próprias palavras.
Em
2005, quando você lançou um trabalho solo (“Obrigado”) você gravou com
músicos brasileiros – o que você primeiro conheceu da música brasileira?
Você chegou, inclusive, a se apresentar com um espetáculo e repertório
inteiramente brasileiro (“Você e Eu”, 2007) – o que mais te agrada na
música brasileira?
O
“Obrigado” corresponde a gravações feitas em 15 anos, de forma
dispersa, portanto não se pode confundir com um disco gravado de maneira
organizada, como o “Você e Eu”, que foi inteiramente gravado no Brasil
com um grupo de músicos brasileiros, em São Paulo. E esse foi um projeto
muito interessante que surgiu. Mas eu me lembro, muito jovem, de ter
ouvido tanto na rádio João Gilberto, Tom Jobim, Elis Regina, Dorival
Caymmi, Chico Buarque. A indústria fonográfica brasileira é muito
respeitada, organizada e os artistas têm uma enorme aceitação aqui, em
Portugal. Desde aquela época, cantores como Caetano Veloso, Maria
Bethânia, Gal Costa visitavam e visitam Portugal com muita regularidade
e, portanto, desde sempre os seguia com muito interesse. Ainda tem a
questão da sonoridade, não é? O português de Portugal e o português do
Brasil, embora seja a mesma língua, são dois “portugueses” diferentes e é
muito interessante perceber como a língua é usada no Brasil, como os
temas que inspiram os cantores são diferentes. Sempre tive e tenho muito
apreço pela música brasileira pela vitalidade que emana dela. E por
essas razões, quando surgiu a oportunidade, foi um privilégio viver, por
dentro, essa alegria que eu vivia por fora.
Você
está trabalhando na divulgação do seu primeiro álbum autoral – O
Mistério, certo? Foi um processo criativo laborioso ou fluiu
naturalmente? Quais foram suas influências, sua inspiração maior?
Ah,
preciso dizer que foi um processo interessante. Eu precisava encontrar
as pessoas para executar esse trabalho e elas foram aparecendo ao longo
dos anos, justamente nos trabalhos “solos” que fiz mesmo no Madredeus.
Entre 2007 e 2010, tive a sorte de encontrá-los e começamos a compor em
janeiro de 2011, sendo que antes disso já havíamos nos apresentado
juntos com um espetáculo chamado “Voltarei à minha terra” – que levamos,
inclusive, para o Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Fortaleza –,
que consistia na interpretação de diversos temas da música clássica
portuguesa do século XX. E foi um espetáculo que correu a Europa e a
América Latina e em janeiro de 2011. Começamos um período de construção
das músicas, das letras e em agosto de 2011, gravamos o disco (“O
Mistério”)... Durou bastante tempo, porque conciliamos as gravações com a
turnê do “Voltarei à minha terra”. Mas facilitou muito que a maioria do
grupo vivesse em Lisboa. Foi um processo muito fluido. É meu primeiro
disco como solista, desde o trabalho de composição, ao exercício da
escrita. A forma como tenho me comunicado com diversas culturas foi um
desafio, mas me sinto muito recompensada.
Você gravou seu disco em um convento, não é? O que determinou essa escolha? Foi técnica ou a atmosfera a ajudou?
Depois
de conceber as letras e aproveitar cada momento de inspiração, de
ideias, o objetivo era gravar em um lugar que não fosse um estúdio
convencional. Nós queríamos estar isolados, concentrados na música e
tanto decidimos buscar um lugar onde isso fosse possível. Encontramos o
Convento Da Arrábida (construção do século XVI), na Serra da Arrábida,
que é simplesmente um lugar magnífico, em uma montanha verdejante, de
frente para o Oceano Atlântico. É um lugar que eu procuro muitas vezes
para rezar e que me agrada particularmente. E nesta serra existe um
convento que eu nunca tinha visitado... E que fui visitar e descobri que
havia uma hospedaria, que servia para receber grupos de trabalho,
convenções, para estudo. E a tipologia da casa, que fica precisamente de
frente para o convento, era ideal, perfeita aos nossos propósitos.
Deslocamo-nos para lá e gravamos o CD lá, em meio à tranquilidade, a um
ambiente inspirador e dentro do que queríamos: completo isolamento. E
foi muito um privilégio gravar lá, em meio a uma natureza magnífica. O
resultado é que podemos dizer que este disco fica para sempre ligado a
um lugar muito especial.
Você
veio a Belém em 2000 e parece que uma única apresentação foi
insuficiente, já que a apresentação foi ao ar livre e lotou as ruas
próximas ao palco. Tem planos de vir ao Brasil para divulgar “O
Mistério”? E sendo bem tendenciosa, a Belém?
Sem
dúvida. E mesmo com os projetos anteriores (“Você e Eu” e “Voltarei à
minha terra”) não deixei de ir ao Brasil, que é um país do qual gosto
especialmente e me sinto muito bem recebida. Com “O Mistério”, já há
datas para muito em breve, só não vou adiantá-las agora porque elas não
estão absolutamente confirmadas. Mas serão muitas datas. O disco, em
Portugal, foi editado por mim e saiu em maio de 2012, mas já aconteceram
edições em muitos outros países: Itália, Espanha, México, Polônia,
Reino Unido. Em breve, Luxemburgo, Bélgica... E a turnê brasileira
acontecerá, bem como a edição do disco também.
Promete que você vai se apresentar em Belém...
(ela cai na gargalhada) Prometo que quero ir. Gostaria de reencontrar Belém.
Você
é tida como uma artista muito acessível, que gosta de interagir com os
fãs em redes sociais, que possui hábitos simples... O que você mais
gosta de fazer quando não está trabalhando?
Olha,
eu preciso te dizer que exerço uma atividade que se confunde muito com
minha vida privada. A música faz parte da minha vida e é com alegria que
construo esse percurso com a música. Portanto, dedico os tempos livres à
música também (risos). Neste momento, inclusive, já estou me dedicando a
um novo repertório, que pretendo gravar brevemente. Mas nos meus tempos
livres, realmente livres, eu dedico aos meus amigos, que são poucos, já
que a rotina de um músico não permite muitas relações duradouras fora
deste meio. Mas eu realmente cultivo hábitos muito simples: gosto de
ler, de ver um bom filme, de ficar com minha família. E aproveito minha
filha (Inês, de 14 anos). Penso que nossa vida, nossa felicidade se
constroem dia a dia e nas coisas mais simples. A realização da
felicidade reside mesmo nas coisas mais simples, que podem parecer não
terem grande significado – são esses momentos que fazem minha alegria e
felicidade.
E qual é o mistério de Teresa?
Talvez
falte dizer que o mistério, o que eu escrevi, os meus textos, sejam uma
fusão de nossos diferentes percursos, das emoções, tanto minhas quanto
dos músicos. No fundo, baseia-se muito na minha experiência, na minha
visão do mundo, que tive o privilégio de conhecer por meio das viagens
que a música me proporcionou. O mistério é uma reflexão da vida. Aos
seres humanos não nos é dada a capacidade de se conhecer, ou melhor,
conhecemos tão pouco do que nos rodeia e sabemos que há coisas para as
quais nunca teremos respostas, mas a aceitação deste mistério nos ajuda a
ter uma noção de nossa dimensão, do quão frágeis somos e da força que
temos, por meio da nossa criatividade, de nossa capacidade em mudar o
mundo."