domingo, 27 de outubro de 2013

Entrevista à revista Leal Moreira

Olá!

A seguinte entrevista foi dada a Lorena Filgueiras pela revista Leal Moreira, disponível no endereço http://www.lealmoreira.com.br/revista/conteudo/gente/ave_teresa


Ave, Teresa


Teresa Salgueiro, uma das mais respeitadas cantoras portuguesas no exterior, vive um momento de graça: seu primeiro disco autoral é sucesso na Europa e ela planeja trazer o show para o Brasil.

Ela foi descoberta ainda garota. Aos 17 anos, cantando com amigos em uma típica tasca portuguesa, a lisboeta Maria Teresa de Almeida Salgueiro tornou-se vocalista do nascente “Madredeus”, em 1986. Iniciava ali a carreira da cantora portuguesa mais famosa no exterior, depois de Amália Rodrigues. Segundo Pedro Ayres de Magalhães, um dos fundadores e diretor do Madredeus, Teresa foi, por vinte anos, “a maior inspiração do grupo”. E não havia exagero algum nessa declaração. Só consegue entender a força das palavras de Pedro Magalhães quem se entregou à magia da voz de Salgueiro. Sem qualquer educação musical formal, revelação surpreendente para nós, não resta muita dúvida de que Teresa foi tocada por uma “existência superior” – como a crítica costuma fazer referência e se render ao seu talento inquestionável. Além da beleza clássica, que foi explorada em quase todas as capas dos discos do Madredeus, a cantora – que possui hábitos muito simples – é extremamente educada e adora o contato com os fãs, além de frequentemente interagir com eles por meio das redes sociais.
A notícia da saída de Teresa Salgueiro do Madredeus, em 2007, assombrou o mundo da música, mas foi o marco inicial de uma carreira solo que já havia sido consolidada, muito antes de seu início propriamente dito. Vivendo um momento de graça, de mais autonomia e compondo suas próprias músicas, ela revela, em entrevista exclusiva à Revista Leal Moreira, toda sua trajetória em bastidores e à frente, no comando da sua própria história. Com vocês, “o mistério” revelado de Teresa.
Você começou muito jovem no Madredeus, aos 17 anos, quando te ouviram cantar em uma tasca em Lisboa, certo? O Pedro Magalhães, certa feita, declarou que você era a grande inspiração do grupo. E a gente tem de concordar que você tem uma voz única, inesquecível. Como começou tua história com a música? Você teve uma educação musical?
Eu tive uma educação musical básica, daquela que você tem na escola, não mais que isso. Tive aulas de piano, durante alguns anos, mas também de uma forma não muito aprofundada, digamos assim. Quando eu comecei a cantar, eu não tinha qualquer tipo de formação.
Apesar de uma não-educação formal musical, de uma forma geral e quase uníssona, os críticos dizem que ao longo dos anos sua voz amadureceu e que ficou ainda mais bonita. Você tem esse mesmo senso crítico?
Como eu te disse, quando comecei a cantar, não tinha qualquer tipo de formação musical formal em relação ao canto. E ainda hoje, devo dizer que não tenho muita formação. A minha grande formação são as canções que eu cantei durante quase vinte anos com o próprio Madredeus e com outros projetos dos quais participei. Algumas dessas canções, gravadas também ao longo desses anos, inclusive foram reunidas em um álbum (“Obrigado”), que foi lançado em 2005. E há muitas outras parcerias em outros projetos. Tudo que eu tenho cantado, no fundo, tem sido a minha grande escola. No início – e isso é possível observar – o primeiro disco que gravei, ou melhor, que o grupo gravou (“Os dias da Madredeus” – 1987), foi feito, de certa forma, de maneira “precária”, porque o disco foi gravado em três madrugadas, direto, sem qualquer direção. Não tinha escola, enquanto cantora, e não tinha direção para o grupo. E quando eu ouço esse disco – do qual gosto imensamente – reconheço uma total espontaneidade e uma falta da direção que, de fato, não havia. É um disco puro, espontâneo. Anos mais tarde, em nosso primeiro disco de estúdio, o “Existir” (1990), é possível perceber uma grande diferença na voz e aí eu já havia começado a ter aulas particulares de canto, por três anos e mais um ano em conservatório. E assim foi quando iniciamos a turnê de “O Espírito da Paz” (1994), que foi o terceiro disco gravado em estúdio. E aí... o processo de aprimoramento continua até hoje (risos).
De certa forma e por muito tempo, sua imagem e a do Madredeus fundiram-se – isso te incomoda? Quase seis anos após sua saída, como você avalia sua saída do grupo e como vê sua própria trajetória em carreira solo?
(risos) Essa pergunta contém muitas perguntas, mas vamos lá. Voltando, por exemplo, ao “Obrigado”, que foi um disco resultado de uma coletânea, por assim dizer, dos trabalhos “solos” que realizei quando ainda estava com o Madredeus. E é possível observar diferenças entre as faixas. Eu sinto uma disparidade na voz, inclusive, porque as músicas foram gravadas em períodos muito distintos. Em relação ao grupo, é absolutamente natural que a imagem seja associada. Por muito tempo, dediquei-me a cantar o repertório do grupo, a divulgar seu pensamento, sua obra. E isso ocorreu por vinte anos. Quando entrei no grupo, eu tinha 17 anos. Logo eu tenho muito mais tempo de vivência no grupo do que tinha de vivência de mim mesma. Entendo perfeitamente que as pessoas ainda me associem aos Madredeus – estranho seria se não fizessem essa associação (risos). Agora, me permita uma observação: o grupo de trabalho que existia quando entrei, foi o mesmo por dez anos. Quando eu saí, o grupo era totalmente diferente. Da formação inicial, no período da minha saída, em 2007, só estavam o diretor do grupo (Pedro Ayres de Magalhães) e o José Peixoto, um virtuose da guitarra, que contribuiu enormemente para o trabalho. Fui me adaptando a todas essas mudanças, até que surgiu um momento em que o grupo parou durante um ano [período que foi definido, por eles mesmos, de “sabático”, em 2007] com ideia de repensar sua atividade, sua própria “calendarização”, porque – imagine você – foram duas décadas intensas. Tínhamos falado até da hipótese de trabalhar em períodos intensivos, de 3 ou 4 meses, e depois os músicos poderiam dedicar-se a outras atividades – já que os músicos tinham outros projetos, outras coisas que desejavam fazer. Quando nos reunimos novamente, ao final de 2007, foi-me proposto um contrato de sete anos de exclusividade e... Passei toda minha vida adulta no grupo, tinha vivido suas diferenças... Os amigos do começo da carreira, da formação original do grupo, já não estavam – e no começo, o Madredeus era uma reunião de amigos, que depois se profissionalizou. E, portanto, pelos próximos 7 anos, eu não poderia fazer mais nada, o que era impossível. Ou era isso, ou era nada, não havia muito a possibilidade de flexibilizar. Vou insistir que havia muito mais tempo da Teresa com o grupo, do que da Teresa sem o grupo.  E eu tinha necessidade de parar um tempo, enfim, para ficar em casa, por exemplo, para o que fosse ou para experimentar novas coisas, de modo que eu decidi que continuaria meu percurso na música. E eu vivi, após isso, tantas novas experiências, novos ensembles,novos estilos... sempre à procura dos músicos, com os quais compus as músicas e gravei em agosto de 2011 [“O Mistério”, CD que ela lança este ano e com o qual pretende vir ao Brasil]. 
Lembro-me de ter ouvido muitas vezes que havia uma discordância saudável sobre o gênero musical no qual vocês estavam inseridos: fado, world music e alguém definiu como “um espírito muito próximo do fado”. A crítica especializada diz que você é a herdeira legítima da Amália Rodrigues. E voltando um pouco à pergunta inicial, em qual dos gêneros musicais você se insere?
Eu não sinto a necessidade de rotular ou categorizar a música. De maneira nenhuma. O fado é uma música tradicional de Lisboa e Coimbra e que viveu seu apogeu e desenvolvimento com a Amália Rodrigues, com toda sua indulgência, da sua extraordinária versatilidade enquanto cantora. Antes, o gênero era considerado muito “marginal”, restrito apenas às casas de fado. E graças a ela – e a outros artistas, mas muito mais graças a ela, certamente – o fado popularizou-se e saiu das casas do fado. Não era muito bem visto ser fadista e, graças à Amália, isso tudo mudou completamente. Em termos líricos também, porque ela começou a cantar poetas contemporâneos e foi buscar outros, de outras épocas. Graças ao trabalho da Amália, a Unesco reconheceu o fado como patrimônio imaterial da humanidade. Quanto ao fado, não vejo relação com o que fiz por quase 20 anos. Talvez a única relação seja o fato de eu ser de Lisboa. Com o Madredeus, cantávamos uma fusão de vários estilos e, com certeza, algo muito próximo ao estilo do fado era realizado, mas o que predominava era um estilo clássico, uma estrutura clássica de execução da canção. Também não era world music, uma etiqueta muito usada para a música étnica. Portanto, o que eu faço é música portuguesa, é música contemporânea, uma fusão de muitos estilos diferentes. Ligada à memória do que é a cultura portuguesa, com influências de outras culturas, o que é muito enriquecedor. Também não se pode confundir a música que faço agora com a música que cantei por quase duas décadas. Durante esses vinte anos, as músicas eram compostas para mim e hoje canto minhas próprias palavras.
Em 2005, quando você lançou um trabalho solo (“Obrigado”) você gravou com músicos brasileiros – o que você primeiro conheceu da música brasileira? Você chegou, inclusive, a se apresentar com um espetáculo e repertório inteiramente brasileiro (“Você e Eu”, 2007) – o que mais te agrada na música brasileira?
O “Obrigado” corresponde a gravações feitas em 15 anos, de forma dispersa, portanto não se pode confundir com um disco gravado de maneira organizada, como o “Você e Eu”, que foi inteiramente gravado no Brasil com um grupo de músicos brasileiros, em São Paulo. E esse foi um projeto muito interessante que surgiu. Mas eu me lembro, muito jovem, de ter ouvido tanto na rádio João Gilberto, Tom Jobim, Elis Regina, Dorival Caymmi, Chico Buarque. A indústria fonográfica brasileira é muito respeitada, organizada e os artistas têm uma enorme aceitação aqui, em Portugal. Desde aquela época, cantores como Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa visitavam e visitam Portugal com muita regularidade e, portanto, desde sempre os seguia com muito interesse. Ainda tem a questão da sonoridade, não é? O português de Portugal e o português do Brasil, embora seja a mesma língua, são dois “portugueses” diferentes e é muito interessante perceber como a língua é usada no Brasil, como os temas que inspiram os cantores são diferentes. Sempre tive e tenho muito apreço pela música brasileira pela vitalidade que emana dela. E por essas razões, quando surgiu a oportunidade, foi um privilégio viver, por dentro, essa alegria que eu vivia por fora.
Você está trabalhando na divulgação do seu primeiro álbum autoral – O Mistério, certo? Foi um processo criativo laborioso ou fluiu naturalmente? Quais foram suas influências, sua inspiração maior?
Ah, preciso dizer que foi um processo interessante. Eu precisava encontrar as pessoas para executar esse trabalho e elas foram aparecendo ao longo dos anos, justamente nos trabalhos “solos” que fiz mesmo no Madredeus. Entre 2007 e 2010, tive a sorte de encontrá-los e começamos a compor em janeiro de 2011, sendo que antes disso já havíamos nos apresentado juntos com um espetáculo chamado “Voltarei à minha terra” – que levamos, inclusive, para o Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Fortaleza –, que consistia na interpretação de diversos temas da música clássica portuguesa do século XX. E foi um espetáculo que correu a Europa e a América Latina e em janeiro de 2011. Começamos um período de construção das músicas, das letras e em agosto de 2011, gravamos o disco (“O Mistério”)... Durou bastante tempo, porque conciliamos as gravações com a turnê do “Voltarei à minha terra”. Mas facilitou muito que a maioria do grupo vivesse em Lisboa. Foi um processo muito fluido. É meu primeiro disco como solista, desde o trabalho de composição, ao exercício da escrita. A forma como tenho me comunicado com diversas culturas foi um desafio, mas me sinto muito recompensada.
Você gravou seu disco em um convento, não é? O que determinou essa escolha? Foi técnica ou a atmosfera a ajudou?
Depois de conceber as letras e aproveitar cada momento de inspiração, de ideias, o objetivo era gravar em um lugar que não fosse um estúdio convencional. Nós queríamos estar isolados, concentrados na música e tanto decidimos buscar um lugar onde isso fosse possível. Encontramos o Convento Da Arrábida (construção do século XVI), na Serra da Arrábida, que é simplesmente um lugar magnífico, em uma montanha verdejante, de frente para o Oceano Atlântico. É um lugar que eu procuro muitas vezes para rezar e que me agrada particularmente. E nesta serra existe um convento que eu nunca tinha visitado... E que fui visitar e descobri que havia uma hospedaria, que servia para receber grupos de trabalho, convenções, para estudo. E a tipologia da casa, que fica precisamente de frente para o convento, era ideal, perfeita aos nossos propósitos. Deslocamo-nos para lá e gravamos o CD lá, em meio à tranquilidade, a um ambiente inspirador e dentro do que queríamos: completo isolamento. E foi muito um privilégio gravar lá, em meio a uma natureza magnífica. O resultado é que podemos dizer que este disco fica para sempre ligado a um lugar muito especial.
Você veio a Belém em 2000 e parece que uma única apresentação foi insuficiente, já que a apresentação foi ao ar livre e lotou as ruas próximas ao palco. Tem planos de vir ao Brasil para divulgar “O Mistério”? E sendo bem tendenciosa, a Belém?
Sem dúvida. E mesmo com os projetos anteriores (“Você e Eu” e “Voltarei à minha terra”) não deixei de ir ao Brasil, que é um país do qual gosto especialmente e me sinto muito bem recebida. Com “O Mistério”, já há datas para muito em breve, só não vou adiantá-las agora porque elas não estão absolutamente confirmadas. Mas serão muitas datas. O disco, em Portugal, foi editado por mim e saiu em maio de 2012, mas já aconteceram edições em muitos outros países: Itália, Espanha, México, Polônia, Reino Unido. Em breve, Luxemburgo, Bélgica... E a turnê brasileira acontecerá, bem como a edição do disco também.
Promete que você vai se apresentar em Belém...
(ela cai na gargalhada) Prometo que quero ir. Gostaria de reencontrar Belém.
Você é tida como uma artista muito acessível, que gosta de interagir com os fãs em redes sociais, que possui hábitos simples... O que você mais gosta de fazer quando não está trabalhando?
Olha, eu preciso te dizer que exerço uma atividade que se confunde muito com minha vida privada. A música faz parte da minha vida e é com alegria que construo esse percurso com a música. Portanto, dedico os tempos livres à música também (risos). Neste momento, inclusive, já estou me dedicando a um novo repertório, que pretendo gravar brevemente. Mas nos meus tempos livres, realmente livres, eu dedico aos meus amigos, que são poucos, já que a rotina de um músico não permite muitas relações duradouras fora deste meio. Mas eu realmente cultivo hábitos muito simples: gosto de ler, de ver um bom filme, de ficar com minha família. E aproveito minha filha (Inês, de 14 anos). Penso que nossa vida, nossa felicidade se constroem dia a dia e nas coisas mais simples. A realização da felicidade reside mesmo nas coisas mais simples, que podem parecer não terem grande significado – são esses momentos que fazem minha alegria e felicidade.
E qual é o mistério de Teresa?
Talvez falte dizer que o mistério, o que eu escrevi, os meus textos, sejam uma fusão de nossos diferentes percursos, das emoções, tanto minhas quanto dos músicos. No fundo, baseia-se muito na minha experiência, na minha visão do mundo, que tive o privilégio de conhecer por meio das viagens que a música me proporcionou. O mistério é uma reflexão da vida. Aos seres humanos não nos é dada a capacidade de se conhecer, ou melhor, conhecemos tão pouco do que nos rodeia e sabemos que há coisas para as quais nunca teremos respostas, mas a aceitação deste mistério nos ajuda a ter uma noção de nossa dimensão, do quão frágeis somos e da força que temos, por meio da nossa criatividade, de nossa capacidade em mudar o mundo."



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