Entrevista concedida a Pedro Esteves.
Foto: Susana Pereira.
“O Horizonte” saiu na semana passada e serviu de pretexto para uma
entrevista a Teresa Salgueiro. Ela já é muito mais que “a voz dos
Madredeus”, é uma compositora em nome próprio. E está preocupada.
Os Madredeus já lá vão, são assunto (bem) arrumado, e Teresa Salgueiro
já não é só a voz, é também a mão que escreve as letras e as melodias no
bloco de notas, algumas já com muitos anos. Este novo álbum sucede a O Mistério
[2012] e é descrito como uma continuação e a opção ponderada de quem
procura outros sons. Contudo, há nas entrelinhas da música e das
palavras de O Horizonte mais do que uma sonoridade aprimorada.
Nesta entrevista, a cantora e compositora fala-nos da sua música, da
carreira e do novo disco, mas também das urgências do mundo, da nossa
dificuldade em aprender com os erros, da raiva que é preciso colocar em
certas palavras e na cola que, para ela, une todas as coisas: o amor.
A
nova digressão
de Teresa Salgueiro começa na Casa da Música, no
Porto, e no dia seguinte no CCB, em Lisboa. Do alinhamento fará parte o
novo
O Horizonte mas também temas do anterior
O Mistério,
bem como de três artistas que a compositora identifica como pilares da
sua carreira: Amália Rodrigues, Carlos Paredes e José Afonso. Vai haver
ainda um fado (não revelou qual) e, claro, canções dos Madredeus.
Diz que O Horizonte é uma continuação de O Mistério. Em que sentido?
No sentido em que O Mistério foi o meu primeiro álbum autoral e
este foi segundo. Também porque há uma continuação em termos sonoros, a
banda é quase a mesma, os instrumentos são os mesmos, se bem que as
guitarras têm cordas de nylon, são semi-acústicas, portanto a
sonoridade é um bocadinho diferente. Começou a fazer mais sentido assim
porque começámos, a dada altura, a fazer arranjos e a introduzir alguns
temas com uma sonoridade mais acústica. Estas guitarras continuam a ser
elétricas mas, quando queremos, têm uma vertente mais próxima da
acústica.
Diz “nós” mas foi a Teresa que escreveu o disco…
Sim, eu escrevi as letras mas a composição é feita em coautoria, é uma autoria partilhada.
"Nascemos para nos cumprirmos e sermos felizes, é por isso que nós vimos
à Terra. Não sei de onde vimos mas é por isso que nós estamos aqui."
Em toda a sua carreira outras pessoas escreveram-lhe canções. Como é que foi essa mudança, era uma vontade que tinha?
Não, não tinha. Sempre tirei muitas notas soltas de viagem, poemas,
coisas que guardava só para mim. O “Horizonte” [single] foi uma coisa
que me veio assim, música e letra, a primeira parte, as duas primeiras
quadras, tal e qual.
Quando é que isso aconteceu?
Já lá vão uns 15 anos, foi ainda no tempo dos Madredeus. Bom, mas ficou,
nunca mais me lembrei mas também nunca mais me esqueci, ficou aqui
guardado algures. Entretanto nos Madredeus sempre cantei canções de
outras pessoas, feitas para mim e não por mim, com as quais sempre me
senti muito próxima (das letras que cantava e das melodias). Era um
processo muito dinâmico, que durou 20 anos, em que interpretei outros
temas que me faziam sentido, coisas que me apeteceu, e nunca tinha
imaginado que poderia ter esta vertente [de compositora].
Mas quando é que se deu o click?
Aconteceu por um desafio do Rui Lobato. Um dia ele ouviu-me tocar piano
(toco muito pouco, mas toco), e desafiou-me. Foi assim que surgiu o tema
“A Batalha” [do álbum O Mistério, 2012]. Depois fiz um percurso de colaborações, a primeira aqui em Portugal com um disco que se chama Matriz
[2009]. Foi uma bela ideia, tinha esse sonho, fixar num disco
repertório que fosse exemplificativo da antiguidade, da diversidade e da
riqueza da nossa cultura.
É um trabalho que está por fazer?
Ficou de certa forma por fazer porque os arranjos não eram bem a minha
linguagem. A ideia era boa mas não ficou completa como eu queria, mas
pronto, fez-se o disco. Isto é um processo de aprendizagem, é a minha
maneira. Sempre aprendi em frente ao público, sou praticamente
autodidata, frequentei o Conservatório [de música] mas por pouco tempo,
toda a minha aprendizagem foram as músicas que eu cantei e foi o palco,
foi uma vida dedicada a essa entrega e a essa procura de dar o melhor de
mim. Fiz a experiência mas não estava contente com a sonoridade, achava que
não era bem aquele o meu caminho. Então, um ano mais tarde, fiz um
projeto a partir de um dos temas que fazia parte desse álbum, chamado
“Voltarei à minha Terra”, em que fizemos arranjos diferentes. A partir
daí começámos a fazer a nossa música, as coisas começaram a surgir, o
processo evoluiu e tornou-se mais natural, livre, dinâmico e de grande
partilha e dedicação. Exige muito tempo, tenho uma relação muito
intuitiva com a música, mas tenho uma grande confiança, gosto muito de
música, sempre ouvi muita música e estou cada vez mais à vontade. É uma
coisa incrível fazer música, é um campo infinito.
Qual é o seu lugar na música portuguesa?
É difícil de explicar… não sei. Posso apenas contar a minha história,
será sempre apenas o meu ponto de vista. Sou alguém que se dedica à
música há muitos anos, que se dedica ao canto, que tem um amor profundo
pela língua portuguesa. E tive a sorte de ter trabalhado com pessoas que
decidiram comigo “vamos ser músicos profissionais”, o que na altura era
muito difícil — e agora volta a ser.
Porquê?
Havia pouca formação, além das escolas clássicas. Hoje há, os músicos
têm mais formação. Entretanto houve uma grande crise, continua a ser
difícil viver apenas da música. Antes havia médicos que eram músicos,
hoje há professores de música que também fazem música. São realidades
que estão sempre em mudança, por muitas razões. Os discos já não são uma
receita com que possamos contar. E houve mesmo uma crise financeira
extraordinária, que faz com que cada vez mais a lógica seja uma economia
de poupar ao máximo nos meios que podem tornar possível a qualidade. E
sem qualidade não há boa música.
Isso deixa-a triste?
Sim, mas nem é só pela música, deixa-me triste pelo estado em que está o
mundo e sobretudo pelas pessoas que passam fome, não é? Para chegarmos
aqui, há toda uma lógica económica — da qual eu falo no tema “A Cidade”,
onde falo da “economia plástica” — que não está a ser usada para
multiplicar os bens que existem e são suficientes para distribuir por
todos.
Nós estamos numa era, temos nível de conhecimento
tecnológico e científico… se isso fosse posto ao serviço da nossa
evolução, uma evolução que respeitasse também o ambiente em que estamos,
que parasse para pensar um bocadinho neste planeta incrível que estamos
a destruir. E estamos a autodestruir-nos, estamos a olhar cada vez
menos para o próximo, a escutar menos o próximo e cada vez mais
distraídos, cada vez há mais ruído, é aflitivo. Sim, deixa-me triste a
condição geral e deixa-me triste e um pouco frustrada esta falta
justiça.
Nessa canção [“A Cidade”] há uma certa diferença na forma que escolheu para dizer algumas palavras.
Talvez, sim. Talvez haja uma coisa que é pouco vulgar em mim que é uma
certa ira, uma certa zanga, porque… já chega, basta, acho mesmo que
basta. É muito complicado parar esta lógica, teremos que criar outras
continuadamente, estar em constante diálogo, estarmos alerta, falarmos
uns com os outros e lutar pela liberdade. A história humana repete-se,
não é? Mas já não faz sentido, porque nós já sabemos muito…
Mas continuamos a cometer os mesmos erros.
Acho que são piores, porque não são os mesmos. Ao serem parecidos com os
antigos são mais monstruosos. Há uma certa inconsciência, que é o
oposto da consciência que deveria haver, porque hoje sabemos mais
coisas, a todos os níveis. Sabemos os erros, podemos analisar, podemos
comparar e temos uma responsabilidade extraordinária e estamos todos
completamente coagidos e deixamo-nos ir com isso. Todos nós somos pouco
interventivos, podíamos ser mais.
Aquilo que é fundamental é o amor entre as pessoas, isso
é a única coisa que nos salva e é realmente a única coisa que fica.
Seguindo essa linha de pensamento, o que é que é mais urgente resolver?
Eu acho que o mais urgente é a formação. A escola, a comunicação, a
forma como se comunica e o que se comunica. O mais interessante seria
dar espaço, acabar com esta lógica de que todos temos de ser um tipo de
pessoa, de que todos temos de servir. Estamos a ser conduzidos para um
tipo de profissões e serviços que servem a lógica que de nós se serve. E
isso é disparatado, é difícil fugir mas só pode começar por aí, só pode
começar na família, só pode começar em cada um ter muita consciência de
si mesmo, em estar atento ao próximo.
As pessoas deviam ter
liberdade. Sempre gostei muito do professor Agostinho da Silva e
lembro-me sempre de ele dizer que é uma coisa muito grave as crianças
não terem espaço para descobrir quem elas são, qual a sua vocação.
Porque cada um de nós nasce com uma capacidade para fazer uma coisa
única que mais ninguém faz.
Acredita nisso?
Acredito, absolutamente. Acredito mesmo. Até com mais do que uma capacidade, mais que uma coisa única.
Ou seja, cada um de nós tem um papel.
Nascemos para nos cumprirmos e sermos felizes. Não sei de onde vimos mas
é por isso que estamos aqui. Mas é difícil, porque a lógica é outra, a
ganância humana continua a ser aquilo que impera, cada vez mais tudo se
está a transformar em dinheiro, é uma coisa incrível, tudo se está a
transformar em números. Mas não em números bons.
Ainda há dias li
uma entrevista de um matemático, de quem não vou saber dizer o nome, que
dizia que estava muito preocupado com o rumo que a espécie humana
estava a levar. Ele acha que a matemática pode ter um papel importante
nisso. Mais, ele acha que a forma como a matemática é ensinada é a
grande responsável pelo estado em que o mundo está. Ele diz que, desde o
início, a matemática deveria ser ensinada como uma procura para uma
solução e não, como é, um imperativo de encontrar uma solução. E
acrescentava que a tecnologia (que é matemática) está a tomar conta de
nós. Qual é a solução? A solução é não deixarmos de falar uns com os
outros, é estimular a criatividade.
Então e qual é o seu papel?
São vários. Sou mãe, por exemplo, tento transmitir à minha filha estes
pensamentos. Mas além da formação de que falava há pouco, aquilo que é
fundamental é o amor entre as pessoas, isso é a única coisa que nos
salva e é realmente a única coisa que fica. O amor é importante, o olhar
para o outro, o ouvir, o estar disponível.
E na música?
Tenho um percurso muito singular, fiz parte de uma aventura única na
música portuguesa, riquíssima, maravilhosa [os Madredeus]. E depois tive
a felicidade de conseguir continuar caminho, que já dura há dez anos,
escrevendo a minha música, dizendo as coisas que sinto que tenho para
dizer. Este é um dos meus papéis e gostava que fosse cada vez mais, isto
de transmitir esta centelha de força e alegria de viver que as pessoas
têm de procurar ter.
E nós vemos que é possível viver com tão
pouco, não é? Em sociedades muito pobres, onde se sofre muito e falta
quase tudo, há pessoas que sorriem, que são felizes. Aquilo que nos faz
felizes, em termos materiais, é muito pouco. Em termos humanos é muito,
mas é valioso e é difícil: o amor e o respeito entre pessoas.
E o sonho, que é disso que fala também O Horizonte
[álbum], aquela linha que está ali e nos convida a caminhar, é o limite
do que nós vemos, do que está à nossa frente. É a linha que une a terra
ou o mar ao céu. Quando começamos um caminho ao encontro dos nossos
sonhos vamo-nos deparando com o mundo e com a realidade.
"Talvez haja uma coisa que é pouco vulgar em mim que é
uma certa ira, uma certa zanga, porque… já chega, basta, acho mesmo
que basta!"
Este álbum é uma tradução de sonhos e anseios?
É a tradução desta minha vontade, alguma teimosia, esta crença profunda
de que é importante perseguir os nossos sonhos, no meu caso é fazer e
escrever música e partilhar isso com as pessoas, esperando que isso lhes
dê alguma alegria. E acredito que é importante lidarmos com o caminho,
com tudo aquilo que aparece, com os obstáculos, com as ajudas…
maravilhar-nos a todo o momento com as coisas pequeninas, que a mim me
maravilham.
Isso tem algo de religioso, ou não?
Talvez tenha. Estou profundamente ligada a tudo aquilo que me trouxe
aqui e tenho um profundo respeito por isso, mesmo com os obstáculos. Mas
é engraçado que muitas vezes esses obstáculos são importantes. Por
exemplo, O Horizonte começou a ser composto logo a seguir à edição de O Mistério [2012] mas entretanto só agora é que foi possível…
Mas ficou muito diferente da ideia original?
Ficou muito mais profundo e muito mais rico do que se tivesse sido feito
logo na altura, portanto ficou melhor. Nesse sentido, aparecem-nos
coisas que às vezes nos tolhem os movimentos mas que eu acredito que são
sempre oportunidades, uma forma de nos dizer “pára e melhora”. Temos de
conseguir transformar.
A nossa música também é assim, O Horizonte é uma continuação d’O Mistério
porque é um segundo passo (na composição e na escrita), mais profundo e
mais rico. Tentamos, com os poucos elementos que temos em palco, fazer a
música soar como uma grande orquestra, vejo sempre um grande espaço, a
música tem de nos levar para um espaço enorme.
Fonte: http://observador.pt/especiais/entrevista-teresa-salgueiro-o-horizonte/